Meu mundo sumiu!

Quase inteiramente! Reconheço algumas ilhas que permaneceram… estranhas.

Chego da Itália dia 4 de março 2020.

Fui ver minha filha, meus netos, meu genro como faço, fazia…, a cada dois meses. Minha família italiana!

Tenho a brasileira e a italiana e como diz Noah, meu neto romano*, non è giusto vovó, tu devi rimanere quà due mesi e ritornare in Brasilie solo en dodici giorni!

Como equilibrar esses dois mundos de afetos, compromissos e muito amor? Meu trabalho, que até aquele momento não poderia ser imaginado a não ser presencialmente! Fomos eu e Elver passear e curtir os netos, trabalhar um pouquinho, visitar amigos em Genebra, viver um pouco a intimidade com a família de Roma. Rumores cada vez mais fortes sobre a pandemia… saímos rapidíssimo da Suíça, sem poder passar em Biela e Cossato, onde meu marido nasceu e encontraríamos seus primos. Milão fechando-se completamente, voo cancelado, Roma começando a fechar-se quando retornamos. Queríamos trazer Larissa e as crianças para o Brasil, para ficarem mais acomodados naquela emergência! Dúvidas, perplexidade! Quando decidimos não conseguimos mais! Tudo se fechou!

Pegamos um dos últimos voos saindo de Roma para Guarulhos.

Aeroporto deserto, algumas pessoas embarcando… silêncio estranho, estamos com medo e ainda não sabemos bem do quê. Medo e vulnerabilidade!

Eu e Elver perplexos! Como deixar nossa filha e netos nas fronteiras fechadas da Itália? Tornou-se tão longe! Não mais somente doze horas de voo. Fácil e pertinho!

*¹não é certo vovó, você deve ficar aqui dois meses e voltar ao Brasil somente doze

dias!

Cada dois meses voei feliz para encontrá-los. Pegar na mão, olhos nos olhos, levar na escola Noah e Mia, apagar as luzes e fazer discoteca, sentir o cheirinho dos cabelos recém-lavados!

Chegamos em Guarulhos e parecemos cautelosos! Será que alguma coisa realmente mudou?

Nada de controles, muita pressa, estamos exagerando? Chegamos afoitos… misturados, ansiosos… Será que tudo sumiu? Queremos contar nossa aflição, ver nossos netinhos e nossa netinha, nossos filhos de São Paulo.

Acho que queríamos ter confirmação que nosso mundo não havia acabado, que as perdas não eram tão impactantes, que a vida no Brasil continuava fluindo.

Queremos recebê-los em casa para o almoço de domingo, Elver quer fazer seu famoso risoto de linguiça que as crianças adoram, e eu, claro, preparar os brigadeiros para João, Bernardo, Leonardo e Mariana.

Telefono para Flavinha, minha nora-filha-querida! “Vovó, isso é impossível, não podemos encontrar vocês! Vocês chegaram da zona mais contaminada da Europa! Vocês precisam fazer a quarentena de 14 dias (ainda bem, pensei, a quarentena de quarenta dias eu não vou aguentar!) e, depois, vocês são grupo de risco e não poderemos nos ver até essa pandemia melhorar!”

Meu coração teve certeza naquele momento que algo muito grande estava nos atropelando…

E meus clientes? Os casais, as famílias, as pessoas? Querem saber como farei… alguns me dizem que não posso atender no consultório, pois significa risco para todos; outros dizem que não gostam da distância, que precisam da presença física. A esperança de ser uma onda rápida faz com que algumas famílias agendem nosso encontro para trinta, quarenta ou cinquenta dias depois!

E meus alunos do Sistemas Humanos?

Eu, tão analfabeta digitalmente, em duas semanas me sentei na frente do computador e do celular pilotando uma tecnologia que assusta meus 73 anos.

Exceto um cliente individual e uma família que pediram para interromper, todos os demais mantiveram os encontros comigo. Já tinha uma experiência grande de atendimento a distância por atender clientes que se transferiram para Europa, EUA, Canadá e Inglaterra e que também me indicaram conhecidos de lá. Não foi um desafio tão difícil!

Mas, não avaliei o impacto das telas durante dez horas diárias, em um trabalho tão sensível, no qual a conexão profunda representa o único instrumento possível para legitimá-lo, em que a percepção de si mesmo e dos outros em interação abrem ou fecham as portas das transformações. Muito diferente atender duas ou três horas a distância e depois mais sete ou oito horas presenciais. Para mim a presença alimenta, regenera, estimula infinitamente mais. Meu nível de atenção focal exige muito mais tensão nos atendimentos a distância.

Meus olhos ficam mais cansados, meus ouvidos sofrem com os fones, minha voz enrouquece. Depois de quase oito meses percebo que me entendo muito melhor com a tecnologia: já sei propor um encontro pelo Zoom, pelo Skype, pelo Face time, pelo WhatsApp…

Meus atendimentos, mesmo com pessoas que nunca conheci pessoalmente, que me procuraram durante a pandemia, transcorrem com intimidade e interesse. Meus alunos propõem continuar as aulas no próximo ano! Estamos sendo flexíveis e férteis! Não posso, porém, esconder que tudo isso, que hoje é minha vida, está ancorada na esperança de que em algum momento poderei me entregar novamente ao que é físico e presencial.

Quero olhar nos olhos, sentir os cheiros e texturas. Sou ainda um ser primitivo demais para transcender e me alimentar virtualmente da vida.

Digo sempre para meus alunos e colegas que a única coisa que peço aos terapeutas é a profunda qualidade da presença com as pessoas que solicitam nossos cuidados. Isso envolve uma complexidade de atributos que

passam pela percepção de si mesmo e do outro, empatia, trocas de energia, consciência dos próprios sentimentos, portas abertas para receber os sentimentos do outro, mesmo que frustrem nossa construção de mundo, ternura para ouvir e legitimar a dor, e o que é importantíssimo, os próprios fantasmas persecutórios acalmados. Para mim, esses são os ingredientes que precisam estar cozinhando lentamente dentro de nós terapeutas, para que o encontro humano possa acontecer e fazer uma diferença.

Assim, a qualidade de nossa presença no aqui e agora, no espaço terapêutico, pode criar o que os gregos denominavam de “temenos (lugar seguro para viver).

Este é um grande desafio: que a qualidade da presença possa fazer nascer um encontro ampliador no “temenos”, agora… no espaço virtual! Um encontro sem a presença física! No mundo virtual, através da tecnologia!

A ausência física e o “temenos” com os netos-crianças, como poderá acontecer?

Depois de três meses eu e Elver passamos a ver nossos netos de longe, sem abraços ou beijos, de máscara. Fui andar de bicicleta, bem afastada, para nos vermos! Levar brigadeiro e coxinha, sem tocá-los!

Um dia João corre e me dá um abraço apertado! Meu coração se aperta e se alegra!

Entendem…, mas estão desconfiados e se afastando…

Meus netos italianos não querem nos ver pelo computador. Minha alma vai aprofundando no luto. Abril, maio, junho!

Meu marido me deixa bilhetinhos que vou colecionando. São retratos de nossa vivência do isolamento:

 

“Tempos difíceis

Ando acompanhado e me sinto só”

“ Ando confuso Deprimido ERRÁTICO!

Mas o que consigo fazer é Ficar ESTÁTICO”.

“A vida mudou Quebram-se as rotinas

Aumentaram as algemas”

A quebra de nossas expectativas, destruiu a fantasia de controle sobre os eventos da vida, e pode ser profundamente desorganizadora não só de nossa agenda existencial, dada como certa, mas de nossas crenças de quem somos.

Um estranhamento não somente do mundo que nos rodeia mas, dolorosamente, de quem somos! Marisa Japur, em seu artigo maravilhoso. “O eu que também é você”, (2007), expande a construção do eu para o território das relações afetivas e sociais as quais tecem os fios de quem somos, como nos conhecemos e como nos reconhecem. Ao se esburacar esse tecido perdemos o outro e os fios de nós mesmos!

Elver escreve:

“Serei lembrado como o vento Passei por aqui

Quem lembra do vento?”

Estamos no auge dos sentimentos de perda!

Quando vejo meus netos brigando mais entre si, não querendo participar das longas aulas online todas as manhãs, quando Mia de cinco anos afirma que não gosta mais dos professores, nem de falar inglês, nem de brincar com os coleguinhas na plataforma da escola e se nega a assistir às aulas, quando Noah desenha o pai em um espaço vazio, cinza, sem chão, sem céu, sozinho falando ao celular, e explica que está trabalhando; quando minha neta Mari diz com tristeza que sua vida era dançar ballet três vezes por semana e que agora não é mais uma boa bailarina; quando Bernardo de oito anos reclama que eu estou muito atrasada, pois não o levo mais ao cinema; quando meus clientes se queixam de não conseguirem dormir ou de não quererem acordar, que estão sem foco e sobrecarregados, sem paciência com os filhos,

não suportando acompanhar as lições de casa, irritados e agressivos com as crianças; quando aconteceram cinco pedidos de divórcio em sete meses, com casais cujas queixas anteriores não pareciam caminhar para a separação; quando percebo minha dificuldade para escrever, preparar minhas aulas online, a agenda totalmente preenchida com cinquenta horas semanais de atendimento, constato o enorme esforço que fazemos, e os impactos que estamos sentindo.

Precisamos digerir nossas perdas!

A vivência de aprisionamento, e esvaziamento dos versos de Elver, reconheci também em mim e nas falas de inúmeros casais e famílias que estava acompanhando. Pedidos de conversas urgentes! Saturadas de queixas, desconfortos, sintomas físicos, explosões de raiva, tristezas difusas que não vão embora…

Brigas, muitas brigas entre os casais espremidos no dia a dia, estranhando as necessidades recíprocas, sentindo-se injustiçados por tantas demandas, sempre na insuficiência. Como disse uma colega, Gladys Brum, no excesso da presença e no excesso de inúmeras faltas.

Conversando com minha filha, que trabalha em consultoria de recursos humanos e conflitos empresariais em Roma, tomo conhecimento de uma pesquisa, realizada na Europa pela Organização Mundial da Saúde (OMS), sobre o impacto da Covid no comportamento das pessoas, que denominaram síndrome da Fadiga Pandêmica. Tudo que tenho observado nesses meses foi descrito e nomeado nesse estudo!

Refletindo sobre essas vivências minhas, de minha família, e de meus clientes desenhei um tripé no qual percebo que estamos apoiados e capturados: o isolamento social, o uso intenso da tecnologia e o medo do desconhecido.

Essas experiências humanas são potencialmente perturbadoras e mobilizam nossas luzes e nossas sombras. Confinados, apertados em espaços existenciais menores, em meio a muitos deveres e poucos direitos, com uma menor sensação de controle de nossas vidas, estamos exigidos a desenvolver

a paciência, a capacidade de suportar a frustração das perdas, a conseguir atravessar as inseguranças sem eleger inimigos, desapegar até de situações pessoais valiosíssimas, entrar em contato com o silêncio interior, ouvir os ruídos dos fantasmas, navegar no caos, para talvez permitir que a fertilidade possa outra vez nascer. Recomeçar e recomeçar, inúmeras vezes, partindo da aceitação de nossas sombras, de nossa vulnerabilidade, de nossa insuficiência.

Estamos enfrentando e atravessando a ameaça gerada pela interrupção da história que acreditávamos que viveríamos. A quebra da coerência de uma história que vínhamos construindo.

Tenho pensado muito no esforço de nos mantermos no caminho da busca da conexão profunda com nossos próprios sentimentos, da construção de uma presença com o outro profundamente íntegra, mesmo quando virtual, da aceitação das nossas limitações, dos nossos medos, do respeito à vulnerabilidade. Uma profunda empatia pela condição humana!

Elver continua escrevendo seus versos,

“O mais estapafúrdio dessa guerra… É que meu ato de heroísmo

É ficar em casa”.

“A vida é só ida Não tem volta”

“Esqueça o que você é

Médico, cirurgião, CEO de grande empresa Todos de joelhos

Corona de rei!

Ficou tudo irrelevante

Somos feitos de pó das estrelas a ELAS RETORNAREMOS Eu, você, filhos, netos

Brindemos à vida enquanto ela nos é DADA!”

“E o vento vem

Nos beija e nos leva”.

O tempo vai passando vamos desenvolvendo outras formas de viver. A fertilidade da experiência humana nos inspira em novas criações, frutos da resiliência. Vamos entendendo as novas regras de convivência, encontrando espaços individuais driblando os perigos. O vírus parece que vai assustando menos, meus clientes ampliam seus espaços existenciais, nós vamos para praia, colocar os pés na areia, entrar no mar …

Estamos em agosto!

Sonho que voltei para meu consultório e estou felicíssima! Subo e desço as escadas arrumando as salas, cheias de cadeiras que parecem não caberem no espaço. Estou criando lugar para tudo aquilo que gosto, para receber as pessoas! Desço as escadas para acolher uma família numerosa que chegou para nosso encontro!

Estou muito feliz! Sorrindo!

Um dos homens me pergunta se eu sei onde fica a Itália.

Estamos ainda na sala de espera! Digo que tenho um globo terrestre em cima, que pode nos mostrar. Subo correndo, procuro em três salas e não encontro.

Desço me desculpo, preocupada!

Subo de novo correndo e abro o armário da sala de meu filho e vejo uma bola vermelha-rosada, que parece feita de carne, penso em um útero, tomo em minhas mãos, sinto uma enorme ternura ao segurá-la e percebo que ela está desmanchando. Desço correndo a escada, levando com cuidado essa bola de carne. Olho para as pessoas, mostro a bola, e digo: a Itália sumiu! Emocionada!

Sinto uma paz resignada.

Acordo com o globo de carne desmanchando ainda nas mãos!

A partir dessa vivência sinto-me novamente inteira. Parece que integrei o que perdi!

Penso em três autores que me inspiram nessa caminhada em direção à elaboração, renascimento, fertilidade e empatia:

Gilberto Safra (2005), quando fala do silêncio interior que não é necessariamente uma vivência de vazio, pois pode ir além da presença se o vinculo construído for singular e profundo.

Carlos Byngton (2010), quando fala do tempo de espera como uma semente da fertilidade.

E, Carlos Sluzki, em uma palestra no 12º Congresso Brasileiro de Terapia Familiar (2016), quando fala de nós como seres sensíveis ao sofrimento do outro, com capacidade de empatia emocional e cognitiva, inscritas em nosso sistema nervoso.

Acredito como eles no caminho colaborador e inclusivo, no qual podemos acolher nossa vulnerabilidade e finitude, nos mantendo em uma ética relacional horizontal e respeitosa, onde reconhecemos o outro dentro de nós e nós dentro do outro.

Penso que, depois da vulnerabilidade humana encenada em 2020, teremos a oportunidade de reconhecer mais profundamente e com mais consciência o tecido e o enredo humanos aos quais pertencemos.

Feliz 2021!

Empatia, pertencimento, fertilidade!

Elver escreve em 2 de outubro…

 

 

“Vou deixar as rédeas soltas do galopar da vida Vou deixar o vento

Levar meus sonhos

Deixar acontecer e ficar vendo!”

 

BIBLIOGRAFIA

BYINGTON, C. – Uma lágrima. In Sobre o Tempo. Org. PERDIGÃO, A.B. São Paulo. Ed. Pulso, 2010.

COLOMBO, S.F. O papel do terapeuta em terapia Familiar: uma ética relacional. In: VALLE, M.E; OSÓRIO, L.C. Org. Manual de Terapia Familiar. Porto Alegre: Ed. Artmed, 2006.

COLOMBO, S.F, GOMES, D.M, LEVY, S.A. Quando a história delineia experiência. Os impasses dos Formadores em Ação. Questões difíceis, Delicadas e éticas da Terapia Familiar. Org. LEVI, L. São Paulo: Ed. Roca, 2009.

SAFRA, G.  A experiência de lugar.  In Sobre o silencio. Org. PERDIGÃO, A.B. São Paulo:Ed. Pulso, 2005.

*² Pesquisa realizada pela Organização Mundial da Saúde na Europa (OMS), relata a síndrome de Fadiga Pandêmica. http://apps.who.int/iris 2020.

Sandra Fedullo Colombo

Saiba um pouco sobre mim

Formei-me pela PUC-SP, em Serviço Social, em 1968. Na década de 70 vivi experiências que construíram minha identidade profissional: Psiquiatria do Hospital dos Servidores Públicos do Estado de São Paulo, Comunidade Terapêutica Enfance