Sobreviventes: a maravilhosa possibilidade de renascer

“Mãe, não te culpo pelo que aconteceu; quer dizer que te amo de todo jeito, lembra que nunca conseguia brigar com você, porque se brigasse, eu me arrependeria demais e depois choraria? (…) não sei o que dizer além de que tenho muitas saudades de você e que te amo demais. Já pensei em me jogar também depois do caso, mas descobri que não tenho coragem e nem porquê. Quero te ver um dia. Apareça para dar um oi ou um abraço porque sinto muito o que aconteceu e queria que você viesse falar comigo sobre isso…” (carta de Teo, 12 anos a sua mãe). “Levei a mamãe para o aeroporto, junto com meus irmãos e meu pai, mas tudo estava esquisito; eu estava muito triste e bravo com minha mãe e com todos. Quando ela pegou o avião eu sabia que nunca mais ela ia voltar.” (relato de um sonho de Flávio, 16 anos, irmão de Téo, após o suicídio da mãe). “A bruxa do castelo bateu na mamãe e jogou ela lá p’ra baixo” (Ana brincando comigo, desenhando um castelo, com a bruxa e a princesa).

Quando você se propõe a iniciar a terapia de uma família num processo de luto, que envolve um suicídio, sente que vai se deparar com uma perda das mais traumáticas, invasivas e destruidoras.
A morte anunciada e escolhida, principalmente como foi a de Márcia, mãe de Téo, Flávio e Ana, traz à tona poderosos sentimentos de amor e ódio,direcionados tanto aos membros que ficam vivos como àquele que partiu, e declarou a ruptura dos laços. Nada torna o outro mais impotente do que o sucesso do ato de matar-se. Assim, impotentes e perdidos, permaneceram Alexandre e os três filhos.
A perda para o ser humano é  uma grande ameaça, a dor da  quebra das expectativas e da história que está sendo construída.
Penso em Freud (1915) que nos lembra em uma de suas reflexões que cada um de nós inconscientemente está convencido da própria imortalidade, e Igor Caruso (1989) aponta para um ditado popular alemão que aconselha a pensar tão pouco em alguma coisa (que não queremos pensar) como se pensa na morte!
Acredito que sentimos a morte como uma ameaça constante do sonho da imortalidade e do absoluto. O que sentir da morte escolhida?
Com esses pensamentos, com muito respeito e coração aberto recebi a família atordoada e congelada nessa dor. Como poderão optar pela vida e ter forças para sepultar quem morreu?
A questão para mim não era aliviar a dor mas sim atravessá-la!
Para isso ser possível senti que precisava estar preparada para suportar minhas próprias perdas e acreditar em algumas alternativas de renascimento.
Na coragem do encontro, nas ressonâncias despertadas em nós por essa vivencia, as seis pessoas envolvidas nessas conversas mobilizaram as forças do pertencimento, enfatizaram as forças da autonomia para não ficarem submersas e paralisados nesse luto. Assim semana a semana o processo terapêutico foi amadurecendo junto com a intimidade.
Acredito que um dos aspectos mais ricos de nossos encontros se deveu à autorização da família para que cada um pudesse voltar à vida sem se culpar ou culpar os outros por não tê-la salvo! O perdão e a saudade muitas vezes se alternavam com às mágoas e as culpas, numa luta intricada de amor e ódio. Mergulhar em terrenos tão sombrios, para tentar novamente viver, é uma tarefa árdua, exige uma força muito grande e nós a tivemos.
Não simbolizar uma perda tão dolorosa através de sintomas como querer pular do telhado, arranjar rápido uma namorada, ter dor de barriga todas as noites, brigar com os professores, não aprender matemática…,Conseguir dar sossego aos fantasmas (e conseguir que eles nos deixem em paz!), não se perder na própria perda, não morrer junto com quem se ama são tarefas enormes. Uma das maiores armadilhas que desarmamos  foi a busca de adoções e pertencimentos alternativos, como tentativas de preencher o vazio familiar. Sentiam a ausência das  fronteiras da família, provocada principalmente por um vaivém constante de pessoas (amigos e parentes) que se autorizavam a assumir lugares significativos na hierarquia familiar. A sensação de uma casa sem paredes e portas era trazida às sessões, sob forma de relatos, sonhos, desenhos e protestos.
Com todos esses ingredientes dolorosos, nossos encontros permitiam que ouvíssemos a experiência da perda de cada um. As conversas intimas, as raivas amparadas na continência, os medos revisitados, a confiança quebrada, as fugas resignificadas… tudo estava ali para ser acolhido.
Passo a passo a construção do pertencer com a força da individualidade começou a renascer.
Saint Exupéry nos ajudou, com sua Carta a um refém (1943) a compreender que não podemos roubar os mortos da eternidade pois assim fazendo, vivemos uma espera sem esperança. Ao permitir que morram podemos viver um novo encontro possível no nosso luto e a roda da vida pode continuar a girar.
Flávio, Téo e Ana aos pouquinhos puderam crescer, brigar com a mãe, escrever e enviar as cartas para a estrela onde estava, fazer as pazes, chorar de saudades! Perdoá-la por não conseguir viver apesar deles existirem, sentirem o próprio valor apesar do suicídio da mãe e compreenderem que não podiam salvá-la do desejo de morrer apesar do amor que sentiam.
Alexandre trazia inúmeras memórias do amor com a mulher, queria entender como o amor não impede a morte! Dizia que nunca havia convivido tanto com as crianças, pois viajava muito a trabalho. Gostava de ouvi-los, chorava muito com a dor deles. Dizia que ela era uma mulher linda e doce, uma mãe carinhosa. Outras mulheres surgiram, mas eram expulsas pela dor e pela culpa. Muito difícil o processo de abrir as portas e confiar novamente. A raiva, a desconfiança e a mágoa foram aparecendo.
Fomos atravessando cada ponte desse caminho! Vários buracos e tropeços! Quantas vezes ficamos estendidos nas margens dessa estrada, sentindo que não conseguiríamos prosseguir… Respiramos, nos demos as mãos e continuamos!
Aprendi muito como terapeuta mas, principalmente como pessoa a viver as perdas, a impotência frente à morte e a confiança na possibilidade de novos nascimentos.
Agradeço a Alexandre, Flávio, Téo e Ana, sobreviventes de uma história dolorosissima, e que renasceram varias vezes de mãos dadas comigo!

Sandra Fedullo Colombo

Saiba um pouco sobre mim

Formei-me pela PUC-SP, em Serviço Social, em 1968. Na década de 70 vivi experiências que construíram minha identidade profissional: Psiquiatria do Hospital dos Servidores Públicos do Estado de São Paulo, Comunidade Terapêutica Enfance