O Terapeuta Familiar
O lugar de co-construtor de realidades alternativas convida o terapeuta a apresentar-se em sua integridade como ser humano, com história, preconceitos, experiências e consciência de sua auto-referência, ou seja, com uma posição relative em seu saber. Convida o terapeuta a refletir sobre seu fazer terapêutico a partir de sua própria existência, seu contexto social, familiar, seu momento no ciclo vital, seus mitos e suas dores.
Coloca em foco e reflexão a ética relacional que desenvolveu em suas histórias de vida e seus modelos afetivos iniciais; discute e revisita sua história e convida-o a rever o equilíbrio dos saberes e dos poderes em seu universe de relações, para que possa construir espaços reflexivos ampliadores, onde todos os envolvidos tenham a possibilidade de expresser sua singularidade e, dessa forma, um cultura de respeito e reciprocidade.
Acredito que a ampliação dos recursos do viver ocorre dentro de um encontro humano mobilizador: um contexto favorável àquele desenvolvimento, em que, ao revisitar as histórias que constituem nosso ser e nosso lugar no mundo, podemos transformá-las. Esse olhar traz em si mesmo a crença de que as relações podem construir a legitimidade da existência e o desenvolvimento das potencialidades ou, ao contrário, interditá-las.
Na companhia de todos esses autores citados ao longo desse capítulo, acredito que o processo de desenvolvimento dos recursos pessoais, assim como o impedimento deles, repousa na pessoa, nas suas múltiplas relações, nos valores da sociedade mais ampla e na ética relacional a partir da qual construímos cada ação no mundo.
O terapeuta familiar é um profissional que, ao ser chamado para entrar na intimidade de um grupo humano, precise possuir recursos que suportem o impacto de divider o espeço de dor, ansiedade, raivas, disputas, lutos e paralisações de todos os envolvidos naquela história, sem patologizar ninguém. Deve também valorizar a voz de cada um, abrindo espaço para as diferenças, ampliando a escuta respeitosa, distinguindo e valorizando os aspectos resilientes daquele grupo, conseguindo colocar-se no lugar de colaborador, e não de Salvador.
Busco enfatizar o valor das relações horizontais, e nelas os saberes são colocados à disposição do grupo para que todos fortaleçam sua própria autonomia ao lado do sentiment de pertencimento.
Quando precisamos ocultar nossa vulnerabilidade e emocionalidade também nos distanciamos de nossas vozes internas e, ao nos desconectarmos de nós mesmos, perdemos a condição de sermos íntegros e espontâneos, condição absolutamente necessária para qualquer encontro humano profundo.
Bowen (1979), quando propõe observer uma escala em que de um lado está a intensidade máxima de indiferenciação do eu familiar, com alta presença dos aspectos fusionais, e, no outro extremo, em continnum o predomínio da diferenciação do si mesmo e baixa presença fusional, convida seus alunos a revisitar suas famílias de origem para lidar com essas forças que constituíam suas histórias Nagy (1983), ao enfatizar a rede de lealdades invisíveis, o livro de débitos e créditos tecido por gerações como forças fusionais, e o foco na percepção das pautas éticas de cada relacionamento, convida-nos também a essas reflexões.
Para que os terapeutas possam peregrinar por esses caminhos de encontro e reciprocidade, eles precisam ser cuidadosos com sua própria humanidade, ser acolhidos em suas histórias e terem a oportunidade de ressignificarem suas experiências, construindo sentido para escolherem ser terapeutas. Consideramos que um dos riscos maiores de nosso trabalho é o processo de “esgotamento” do terapeuta apontado por duas colegas: Gilda Montoro (em conversa que me fizeram pensar) e Rosa Cukier (2002) (em um artigo intitulado “Fadiga do Psicoterapeuta: Estresse Pós-Traumático Secundário”).
A continua exposição a situações de dor, ansiedade e angústia, além do processo constante de conexão com o próprio mundo interno, com suas indagações e dores, constrói um lugar humano privilegiado para a ampliação dos recursos afetivos de tolerância, cooperação e criatividade, mas também amplia os riscos de estresse e organização de respostas defensivas e de evitação dos sentimentos de desconforto tanto em si mesmo quanto de acolhimento ao outro, desconstruindo o espaço de reflexões que se espera no encontro terapêutico.
Não acredito dentro da ética relacional que proponho na possibilidade de falar sobre o outro, mas com o outro. Para tanto, precisamos ouvir nossas vozes internas e, assim, poder conectar-nos às vozes externas, dando lugar a essa dança dialógica.
Mony Elkaim (1989) acredita que a libertação do terapeuta é fruto da autorização para integrar tudo que o constitui, que pertecem a sua história, ao seu fazer terapêutico. O ponto de partida para a construção mútua da realidade é o encontro de todos os mundos envolvidos, suas intersecções e ressonâncias, o que o profissional instrumentalizará para construir espaços férteis em desenvolvimento.
Quando o terapeuta esta autorizado a percorrer esse caminho e, a partir dessa vivência, a ampliar seus recursos como ser humano, caminha em seu processo de individuação ou, como diz Gilberto Safra (2006), no processo de destinar-se, de ser autor de seu destino. Acreditamos que esse olhar será traduzido em sua atuação terapêutica.
Enfatizará a dança entre a autonomia e pertencimento, o construir-se dentro da relação humana, existindo com o outro, criando significados e partilhando sentimentos, ao mesmo tempo em que enfatizará um lugar singular e de própria autoria de cada pessoa envolvida naquela relação.
Von Forester, em discurso de abertura do Congresso Internacional de Paris (1900) sobre Sistema e Terapia Familiar, compartilha a ideia de que a posição ética de cada um de nós é concretizada através da escolha epistemológica, afirmando que havia escolhido ser parte do universo, porque essa posição o unia, de forma inseparável, com suas ações, em direção a todos os outros, e essa era a base do seu fundamento ético.
Minha proposta a nós, terapeutas, é a de que, em primeiro lugar, nos aprensentamos cada vez mais para nós mesmos, através da consciência da auto-referência, e de que toda distinção e escolha que fizermos seja fruto das ressonâncias acordadas em algum ponto de interseção com o outro, pertencendo a todos os envolvidos naquele encontro; em segundo lugar para o outro ou outros parceiros, convidando-os a partilhar, em clima de solidariedade, as histórias que necessitam reescrever para dar continuidade à vida. Esse desponjamento do poder sobre o outro sem abrir mão do seu próprio saber e de sua presença na relação é um grande desafio e exige condições especiais do profissional que trabalhará com as forças de fusão e de deferenciação de nossas histórias relacionais, construindo uma ética relacional com os valores descritos anteriormente.
Trecho de autoria de Sandra Fedullo Colombo retirado do livro “Manual de Terapia Familiar” de Luiz Carlos Osorio, Maria Elizabeth Pascual do Valle e colaboradores.
Sandra Fedullo Colombo
Saiba um pouco sobre mim
Formei-me pela PUC-SP, em Serviço Social, em 1968. Na década de 70 vivi experiências que construíram minha identidade profissional: Psiquiatria do Hospital dos Servidores Públicos do Estado de São Paulo, Comunidade Terapêutica Enfance.